Casinha do Cachorro

- Quem é?

A voz tinha uma tonalidade diferente da normal de Lennart, logo seu visitante saberia que estava lidando com uma das múltiplas personalidades dele. Seus cabelos antes castanhos haviam sido pintados de preto, por algum motivo que somente a personalidade que estava no controle saberia dizer. Com uma garrafa de vodka em uma mão e um cigarro na outra, Lennart agora esbanjava uma falta de educação enorme. Não que aquela personalidade algum dia se importara em ser educada. Não, Natasha nunca se importava com coisas como essa. Ela era o que o povo chamava de punk, mas até mesmo essa definição estava abaixo daquela amante de violência.

- Entra logo, porra!

Natasha era uma garota de 19 anos, um pouco mais velha que Edrik e Nymeria, porém aquilo não importava muito. Ela tinha um pavio curto e uma ânsia por violência, preferindo sempre resolver tudo com seus punhos. Ela era um perfeito contraste a parte de Edrik que era uma pacifista. De um lado, um rapaz que evitava brigas do outro uma garota que vivia por elas. Deixando que a garrafa fazia rolasse pelo chão, Natasha levantou-se e deu um último trago em seu cigarro, antes de apagá-lo no cinzeiro que havia ao lado da cama. Ela caminhou firmemente até Edrik e olhou-o em seus olhos, soltando a fumaça no rosto do rapaz lentamente.

- Eles não aguentam dez minutos de porrada comigo, então nunca que vão reclamar - Ela falou, mantendo seus olhos azuis fixos nos olhos bi-colores de Edrik. Aquela garota era uma pessoa difícil de se lidar - E que se foda se reclamarem também.

Ela virou-se, caminhando de volta até a cama e jogando-se nela.

- Quer conversar com o Lennart? - Ela perguntou, seu tom era quase de deboche - Bom, azar seu, ele não vai voltar tão cedo. Na verdade... - Ela levantou-se e olhou para o relógio - Eu não vou ficar aqui por muito tempo também. Talvez você tenha mais sorte com o Raizel.

A garota suspirou, desejando cada vez mais que houvesse uma bebida ali. Ela acabara rápido demais com a vodka e agora se arrependia plenamente disso. Mas também, ela só podia sair algumas vezes e raramente conseguia arrumar uma briga, para poder liberar um pouco de raiva. Essa parecia ser um infinita na garota, que sempre estava se envolvendo em algum problema. Isto é, quando de fato chegava a deixar a mansão e não passava o dia inteiro bebendo e afogando seus problemas com a mais pura Vodka.

- O Lennart é quem fica mais tempo no controle, depois é o Requiem, depois o Raizel, depois eu e por fim o Azazel. Depende do dia da semana e o quão ocupado o Lennart vai estar. E se ele interagir com a Nym, fodeu. Literalmente e figurativamente - Ela abriu um sorriso ácido logo após falar aquilo, sabia que Edrik não deveria se importar. Tanto assim. Se ele estava ali e queria conversar com o Lennart, só poderia ser sobre a Nymeria - Bom, tá na minha hora. Da próxima vez que eu te ver, vamos beber um pouco.

Aquele convite já fora feito antes e quando Edrik o aceitara e de fato saíra beber com a outra personalidade de Lennart, acabara se envolvendo no que deveria ser uma das maiores brigas de bar da história da humanidade. E é claro que Natasha saíra vencedora da luta. Uma memória que deveria estar bem viva na cabeça de Edrik, já que toda vez que se viam, Natasha fazia questão de lembrá-lo. Com seus olhos fechados, o corpo de Lennart estremeceu um pouco e quando ele voltou a abrir os olhos, eles já não eram mais azuis. Mas sim vermelhos sangue.

- Olá, Edrik. É bom vê-lo - Aquela voz cortês pertencia a uma das personalidades de Lennart, provavelmente a mais bem-educada de todas elas. Raizel.

- Qual a graça de beber sem brigar?

Esta foi a última coisa que Natasha murmurou, antes de dar lugar a Raizel. A postura deste era completamente diferente das dos outros, portando-se mais como um nobre do que qualquer coisa. E na realidade, Raizel '' era um nobre ''. Nas memórias dele, ele podia ver o castelo no qual morara por tantos anos, sabia o nome de cada um de seus criados e de seus amigos mais próximos. Porém estes nunca existiram e esse castelo nunca de fato fora construído. Apenas mais uma lamentação para o nobre.

- Eu estou bem, suponho - Ele falou, erguendo seus olhos vermelhos para a janela - Eu já trarei Lennart para conversar com você, mas antes, preciso lhe contar sobre algo que vi. Enquanto eu caminhava pela cidade, eu passei na frente da NTU e eu vi um monstro Ele tinha sete cabeças e dez chifres e em cada um destes havia uma coroa. E as pessoas tratavam aquele monstro como se ele fosse um humano - Ele voltou seus olhos para Edrik, sua seriedade sendo espalhada pelo local - Tome cuidado com o monstro, Edrik. Ele pode e vai destruí-lo

- Destruir? - Raizel começou a rir, algo que nunca acontecia. Ele sempre se mantinha sereno em todas as conversas, raramente sorrindo. Porém, agora ele gargalhava. Não era como a risada normal de Lennart, uma que era até gostosa de ouvir, que fazia com que outras pessoas sorrissem. A risada de Raizel trazia ao quarto um vento gelado, que faziam até os ossos sentirem e que os corpos tremessem - Creio que a nossa definição de destruir e a dele sejam diferentes, muito diferentes.

Raizel parecia ter de fato interagido com o monstro, porém não planejava revelar mais do que aquilo. Nem mesmo sua fidelidade aos Lindbergs poderia forçá-lo a falar. Ele sabia que as consequências vindas de ser um pouco mais resistente com os russos era melhor do que as consequências de revelar a identidade do monstro. Se até mesmo aquele nobre o temia, aquele monstro deveria ser realmente terrível. O modo de falar de Raizel era um pouco poético e ele adorava ilustrar suas falas. Logo, era possível se assumir que ele vira um humano a quem ele considerara um monstro.

- Planeja conversar com Lennart, não é? Posso saber o assunto?

- Neo Tokyo irá queimar -  Falou Raizel, de súbito. Já não havia como esconder aquilo, até porque desde que a identidade do monstro não fosse revelada, Raizel não seria levado aos extremos. Os olhos do nobre abaixaram-se até o chão, Edrik poderia notar que a cidade não iria queimar no sentido literal, porém ela entraria em um estado onde a recuperação era quase impossível - Não posso falar mais do que isso, meu caro Edrik. Porém, quando encontrar esse monstro, mate-o. Não pense duas vezes.

Mal sabia Raizel, que semanas depois Edrik e Nymeria realmente encontrariam o monstro, porém não notariam o lobo disfarçado no meio dos cordeiros, apenas sorrindo e esperando. Aquele ser era realmente terrível e suas ações não possuíam limites, as consequências não o alcançavam e todos aqueles que o conheciam jamais o entregariam, pois sabiam que a fúria dele era algo terrível. Matar uma pessoa não bastava para ele. Ele a faria sofrer antes, desejar a morte e quando de fato fosse ser morta, morreria sem esperanças.

- Creio que a juventude chame isso de '' empaca-foda ''.

- Não dessa maneira, não dessa maneira - Murmurou Raizel. A outra personalidade de Lennart estava realmente preocupado com o que estava por vir, pois sabia o quão horrível eram os planos do monstro. Ou o quão terrível era a extensão do que ele sabia - Agradeço por isso. Pois eu juro-lhe que tentei Edrik. Porém falhei.

Raizel não matava, ele não era um pacifista completo, porém acreditava que tirar a vida de uma outra pessoa era algo desnecessário. Logo, se ele falava que tentara matar aquele monstro, isso só podia significar que a situação estava indo de mal a pior. Raizel odiava armas e raramente pegava em uma, e até mesmo quando chegava a fazer isso era apenas para intimidar a pessoa, nunca para disparar. É claro que, como quase todas as personalidades de Lennart, ele já matara alguém antes, porém talvez fosse a única que se arrependia amargamente de ter feito isso.

- E isso certamente o deixaria depressivo. E um Lennart depressivo é um perigo para este corpo - Raizel deu uma pequena risada, antes de fechar seus olhos uma última vez. Quando eles voltaram a ser abertos, estavam verdes - Edrik? Aconteceu alguma coisa?

Assim que Edrik tocou Raizel, o corpo do rapaz estremeceu. Aquela personalidade não estava acostumada a ser tocada, uma vez que a maioria das pessoas costumavam manter distância de Raizel, mais por respeito do que medo, o contrário seria o caso de Requiem, onde apenas a presença dele causava um certo desconforto na maioria das pessoas. Porém, ele deixou que a mão do rapaz permanecesse, uma vez que uma sensação de conforto provinha do toque daquele rapaz.

- Agradeço-lhe por isso, Edrik Lindberg.

Não eram apenas os gêmeos que estavam em perigo, era Neo Tokyo inteira. Raizel não sabia exatamente o que o monstro faria, porém tinha um escopo do que ele desejava fazer, porém haviam tantos caminhos para se chegar até o objetivo final do rapaz que chegava a ser algo assustador. Alguém tinha que abatê-lo.

- Pois é, mas podia ser pior. Antes eles tomavam controle aleatoriamente, agora consegui fechar um acordo com quase todos - Lennart piscou um pouco, o único que ficara fora do contrato era Azazel, porém ele tinha um padrão para aparecer. Toda vez que Lennart ou uma das outras personalidades matavam alguém, a pequena criança aparecia - Sobre o que quer conversar? É sobre Nymeria?

- Emails. Cada uma das personalidades tem seu próprio email, então nos acertamos por eles - Explicou Lennart, era algo um tanto confuso ter que passar emails para si mesmo sempre que alguma das personalidades fazia planos, porém era melhor do que deixar tudo no aleatório - Nunca.

Foi tudo o que disse Lennart, assim que Edrik terminou de falar. Ele reconhecia bem o problema que era o seu relacionamento com Nymeria e o quão perigoso ele poderia vir a ser caso Vlad acabasse por descobrir o que ambos faziam quando ele não estava em casa. Teria sido mais fácil se tivessem parado justo no começo, porém agora já era tarde demais. Era impossível impedir que aqueles dois vissem um ao outro e ninguém conseguiria mudar a mente dos dois. Por mais que ambos não fossem admitir, estavam apaixonados um pelo o outro. E amor normalmente jogava tudo o que era racional pela janela.

- Eu nunca vou deixar Nymeria ser ferida, Edrik. E Vlad nunca vai descobrir.

- A Natasha não usa o celular, o Raizel raramente usa o computador o que dirá um aparelho menor, o Azazel mal aparece e o Requiem é cego. Ele foi o único com o qual eu não precisei fechar contrato por email, ele meio que sacou o que estava acontecendo - Aquela situação era bem mais complicada do que Lennart desejava que fosse, porém era uma das melhores soluções a seu alcance.

A expressão de Lennart tornou-se um ponto de interrogação, ele não entendia o porquê de Edrik estar olhando-o de uma maneira estranha como aquela. Foi só então que ele parou para revisar o que falara no calor do momento e seus olhos arregalaram-se por um momento. Ele também notara o que suas palavras podiam insinuar, porém ele não demonstrou vergonha. As palavras dele eram verdade, no final das contas, ele jamais deixaria que Nymeria fosse ferida e se fosse necessário matar Vlad para garantir isso, ele o faria. Talvez ele realmente estivesse apaixonado por Nymeria. Admitir isso para si mesmo era difícil, agora admitir isso para Nymeria seria ainda mais complicado.

- Eu sei bem disso, mas planejo deixar ele no escuro o quanto for possível - Lennart disse, em seguida olhando para o olho vermelho de Edrik. Ele temia a resposta que Edrik lhe daria, porém ainda assim suspirou e decidiu perguntar - Não. Ela nunca chegou a me falar nada. Eu sempre pensei que tivesse sido seu pai. Não foi ele?

- Realmente são. Mas é melhor assim, nunca que eu daria um celular para a Natasha, ela só acabaria perdendo ou quebrando ele.

A vida de Lennart era um caos constante e ainda não existiam soluções para aquele tipo de distúrbio mental, logo ele apenas tivera que aprender a lidar com isso. Esse transtorno ocorria devido a um forte trauma pelo qual a pessoa passara, independente da idade. No caso de Lennart, suas personalidades se manifestaram após ele presenciar a morte de seus pais, desencadeando aquele sistema de defesa para que pudesse lidar com aquela situação. Ele não deveria ter mais do que 9 anos de idade quando isso aconteceu e desde então dividia seu corpo com as suas outras quatro personalidades. Era um caso até mesmo fácil de se lidar, o dele, haviam pessoas com mais de 20 personalidades diferentes.

- Vai ficar me deixando curioso mesmo? - Lennart suspirou por um momento - Pois bem, eu pergunto para ela.

- É, você me pegou aí.

Natasha era a personalidade de Lennart que detinha boa parte de sua fúria, acumulada pelos anos e experiências pelas quais ele passara. É claro que mesmo que Lennart em si não tivesse tanto ódio, Natasha ainda assim seria a pessoa inflamada que é. Por mais que Lennart sempre estivesse sorrindo e brincando com todos ao seu redor, e até mesmo flertando com alguns, era possível notar que o rapaz escondia boa parte de seus pensamentos, evitando entrar em conversas um tanto mais complicadas para evitar confusões.

- Sem problemas - Lennart disse, sorrindo. E logo em seguida parou de sorrir, seu olhar ficando mais sério conforme Edrik falava - Eu cheguei a contar para você como eu fiquei naquele estado? Tipo, realmente entrei em detalhes? Acho que não.

Lennart inclinou-se para frente, ainda sentado na sua cama. Seus olhos verdes completamente melancólicos, com uma pitada de raiva neles. Era a primeira vez que Edrik via Len tão sério assim, até mesmo durante missões de alto risco era comum ouvir o rapaz contando piadas e brincando com as situações, por mais horríveis que elas fossem.

- Eu comecei a trabalhar em uma empresa de mercenários chamada Naspharia. Era um lugar... decente. Não possuía um código de ética muito rígido, logo éramos contratados para fazer as missões mais sujas existentes. Todos lá dentro tinham um codinome, o meu era Lothur e o do meu mentor e melhor amigo era Asdir, mas o nome dele era Aakif - Lennart subiu seus olhos para poder olhar Edrik - Na última missão dele, fomos emboscados. Ele foi morto e eu... fiquei naquele estado. Eu aceitei os AUGS para poder vingar meu amigo, mas é claro que nunca tive a oportunidade de ir atrás deles. Mas pude utilizar de alguns contatos para descobrir quem eram. Os nomes são: Mikhail Filippovich e Stebleva Zakharovna. Familiares, não é?

É claro que Edrik conhecia aqueles dois nomes. Anos atrás, haviam cinco líderes do Inverno Soviético, o esquadrão de ataque dos Lindbergs, Ivan, Sergei, Bóris, Mikhail e Stebleva. Estes dois últimos desertaram e estavam fugindo dos Lindbergs desde então, carregando consigo informações importantes e servindo como mercenários sempre que podiam para juntar dinheiro. Eles ainda estavam longe do alcance das garras de Vlad e haviam sumido da face da Terra, alguns pensavam que eles haviam morrido, porém Vlad e Lennart sabiam que os dois estavam vivos.

- Irônico, não é? Estou trabalhando para a máfia de onde os assassinos de Aakif vieram. Ele foi a coisa mais próxima que já tive de um irmão e aqui estou eu, ajudando o local que criou aqueles dois. Você talvez não entenda muito bem o porquê de eu ter tentado manipular Nymeria para tentar sair daqui, mas pode ter certeza de que já não quero mais isso - Lennart escondeu o rosto com suas mãos - Eu acho que estou apaixonado.